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“Utopia e distopia em tempos de pandemia"

Por Rogério Bianchi de Araújo

Os imaginários utópicos e distópicos sempre estiveram presentes entre nós. Enquanto a distopia esteve presente de uma forma um pouco mais fabulosa, e hoje, mais presente em obras literárias ou cinematográficas, já pudemos vivenciar algumas utopias e outras se realizaram e transformaram-se em distopias, como o nazi-fascismo por exemplo. 

A utopia é um mundo que não está realizado, mas é realizável e desejável em ambiente satisfatório. A distopia também não é um mundo realizado, mas diferentemente da utopia, não gostaríamos que se realizasse. Ambas remetem diretamente ao futuro.

Alguns filósofos se debruçaram sob a perspectiva da utopia, sobretudo no mundo Ocidental em que podemos destacar algumas utopias clássicas. A República de Platão foi idealizada com o objetivo de instaurar uma organização social harmoniosa em que as pessoas teriam o seu papel social bem definido. A Utopia de Thomas Moore é que fez com o conceito fosse criado. O filósofo escreveu essa obra como uma alternativa às dificuldades sociais enfrentadas pela Inglaterra na época. A utopia de Tomasso Campanella, A Cidade do Sol, fundada sob os auspícios de uma ordem social e uma hierarquia inspiradas na astrologia. E, por fim, a utopia do filósofo inglês Francis Bacon, intitulada Nova Atlântida em que a ciência e a tecnologia viriam para nos proporcionar o melhor dos mundos.

 

O termo utopia foi de certa maneira banalizado na contemporaneidade porque é perigoso para um sistema político em vigência, já que com a utopia sonha-se com um mundo possível. Muitos governantes preferem indivíduos obedientes que seguem como “gado” para abatedouro sem maiores questionamentos.

No século XIX, há um divisor de águas quando mencionamos as utopias. As ideias utópicas oriundas desse período, sobretudo as que dizem respeito ao mundo do trabalho, são criticadas com veemência por Marx e Engels acusando os autores como socialistas utópicos, para os quais Marx e Engels se propõe a pensar um socialismo científico. No entanto, a proposição marxista presente no Manifesto Comunista também é uma utopia, uma vez que o projeto era de que todos os proletários do mundo deveriam se unir em prol de um projeto comum que implicava na derrubada da classe social burguesa e a instauração de um comunismo planetário. No entanto, ao fazer isso, Marx coloca a utopia num campo mais elevado, tirando-a de uma perspectiva mais literária, filosófica e abstrata para um campo de uma práxis política. Somada a esse divisor de águas incluo o Positivismo do filósofo francês Augusto Comte para o qual a “Ordem e o Progresso” poderiam ser alcançados nas sociedades humanas com a ação das ciências, principalmente da Física Social.

Com o século XX e o advento das guerras mundiais, além das ideologias fascistas e nazistas, fez com que as distopias estivessem em mais evidência, principalmente no campo literário. Há de ressaltar duas obras clássicas distópicas: O admirável mundo novo de Aldous Huxley e 1984 de George Orwell. As duas obras tratam de sistemas totalitários ambientados no futuro. Ao longo do século XX as distopias foram crescendo, principalmente por conta dos problemas climáticos causados pelo impacto ambiental devido à ação humana. Como consequência, hoje estamos, de fato, na era do Antropoceno.

É possível verificar no cinema e na literatura a presença das distopias em ficções científicas que se baseiam, infelizmente, em possibilidades concretas de destruição, contágios em massa, etc. Embora não gostaríamos que as distopias se realizassem, num cenário de pandemia contemporânea, ela de fato se realizou. Estamos vivendo a maior das distopias porque, embora existisse o nazismo, o fascismo, esses eram localizados enquanto a distopia atual é planetária. Por outro lado, ainda não tivemos a oportunidade de viver uma utopia planetária.

Diante desse quadro, é possível destacar três cenários em que são passíveis de uma reflexão filosófica. O primeiro é um cenário utópico de um futuro pós pandêmico no sentido do que nos fala o filósofo esloveno Slovej Zizek para criarmos um novo comunismo que fortaleça os laços de comunidade. Um pouco mais palpável de se realizar nesses cenários utópicos, seriam taxar as grandes riquezas no sentido de uma melhor distribuição de renda, a instauração de uma política de Estado de garantia de renda mínima e o estabelecimento de uma economia do cuidado em que valorizaríamos o cuidar uns dos outros. O segundo cenário é pós-pandêmico distópico. De acordo com o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, estamos adentrando um futuro de vigilância digital e o filósofo italiano Giorgio Agamben também corrobora desse futuro distópico ao dizer que nossa liberdade será cada vez mais cerceada. Num terceiro cenário pós pandêmico, o niilismo passivo pode ser o pior cenário. Seria a volta ao normal, mas segundo Naomi Klein, o normal seria mortal. Como voltar ao modo de vida anterior como se nada tivesse acontecido e votarmos a sermos rebanho numa sociedade de consumo?

O que nos parece irreversível num mundo pós pandemia é que todos estaremos onlife, termo utilizado pelo filósofo italiano Luciano Floridi, todos estaremos hiperconectados. Teremos a partir desse novo mundo dois riscos cada vez mais acentuados: a ideia da pós-verdade com as fake news e a falsa sensação de se estar bem informado e o outro risco é a questão do trabalho, num possível fortalecimento da ideologia neoliberal em que as pessoas trabalham online em suas casas com outra falsa sensação, a de horário flexível e liberdade, porém terá que arcar com todos os custos para desempenar a função, além da perda de direitos trabalhistas.

O fato é que nesse ambiente de pandemia, isolamento social, distanciamento e reclusão, os imaginários utópicos e distópicos são efervescentes e agora com respaldo científico. Real e imaginário nunca se aproximaram tanto.

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