ALTERAÇÃO E ATUALIZAÇÃO
Uma perspectiva orteguiana sobre a atualização de artefatos tecnológicos
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Victor Renato de Morais MAIA
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A técnica, que segundo Ortega y Gasset (1997) seria a reforma que o homem impõe à natureza, a qual implica na elaboração de artefatos tecnológicos. Tais artefatos, possibilitam a manipulação do meio natural. Aqui o homem assume a posição de um Demiurgo platônico, o qual interpreta as circunstâncias, elabora um plano de ação e reorganiza as substâncias do mundo, gerando novos objetos artificiais. Em sua interação com as circunstâncias, o homem produz artifícios.
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O humano, segundo Ortega y Gasset, é um animal do bem-estar, deve estar bem no mundo. Sua condição de "centauro ontológico" (ORTEGA Y GASSET, 1997, p. 34), metade na natureza e metade fora desta, implica na necessidade de construir uma sobrenatureza para que possa ser. Sua ontologia se dá em uma sobrenatureza construída de forma técnica, posterior a um planejamento para atender suas necessidades de bem-estar neste mundo.
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Ortega y Gasset afirma que os animais já são e necessitam apenas estar no mundo sendo. Ao contrário, o ser humano não apenas vive para suprir suas necessidades de mantenimento biológico, necessita estar bem no mundo. Por isso, ao lidar com as circunstâncias, não somente a interpreta e adaptando-se a ela, mas também a manipula com a finalidade de construir uma sobrenatureza onde pode obter seu bem-estar.
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Os humanos tendem a atualizar suas técnicas e com isso produzem artefatos tecnológicos cada vez mais "atualizados". O que importa é o progresso e o incremento de funções, funções estas que manipulam a natureza de forma muito eficiente, mesmo que esta "natureza" seja a natureza humana. Os algoritmos são demonstrações contemporâneas de manipulação da natureza, a saber, da natureza humana. Nossos “clics” são estudados e induzidos.
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Ortega y Gasset (1997, p. 15) define três estágios na relação do homem com sua circunstância: alteração, ensimesmamento e ação. Alteração seria a situação onde o homem sente-se perdido nas circunstâncias, dentre as coisas. O ensimesmamento é o recolhimento do homem em si mesmo, sua retirada momentânea do mundo, onde forma ideias sobre as circunstâncias que este lhe apresenta, refletindo sobre as possibilidades e o “possível” domínio destas. A ação seria o momento de atuação do homem na natureza, na circunstância, atuando conforme seu plano concebido no ensimesmamento (ORTEGA, 1973, p. 62).
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Ação sem ensimesmamento, sem um plano concebido, é alteração. A resposta aos estímulos externos produzidos pelas tecnologias se caracteriza como alteração. Esta alteração – do latim alter, significa "outro" –, erroneamente é interpretada como sendo uma ação. Todavia, a ação somente é possível quando posterior ao ensimesmamento, como sendo consequência deste estágio. Não há ação sem o ensimesmar-se, pois bem como nos mostrou Ortega y Gasset (op. cit., p. 62) uma ação é a execução de uma plano em como se relacionar com a circunstância que nos apresenta ou em relação à situação de naufrágio a qual nos encontramos. Portanto, se respondemos a algum estímulo externo de maneira emotiva ou impulsiva, estamos "alterados".
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As constantes atualizações dos artefatos tecnológicos nos alteram. Formam um emaranhado de circunstâncias, coisas nas quais estamos naufragados. O naufrágio é uma de nossas características contemporâneas, estamos naufragados porém crentes de que agimos. Queremos o atual e não sabemos explicar o porquê. O modelo anterior de determinado artefato tecnológico torna-se obsoleto mesmo antes de ser plenamente conhecido e utilizado. Carros em pleno funcionamento, assim como Smartphones, são "descartados" para que haja a aquisição de sua atualização. A simples possibilidade financeira desta aquisição, leva o humano contemporâneo a "agir" assim. Todavia, não é um “agir” mas sim, um “alterar-se”.
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Em um sistema onde a oferta faz a demanda, tal esta alteração seria esperada. A propaganda e o marketing são ferramentas poderosíssimas de alteração. Induzem ao humano a responder aos seus estímulos sem uma reflexão ou planejamento prévio. O marketing induz ao consumo do que não se necessita, sem possibilitar uma reflexão sobre o lugar de determinado artefato em nosso plano vital. Os artefatos (carros, Smartphones, etc.) tornam-se coisas onde estamos naufragados. O marketing funciona como ferramenta de manipulação, implicando assim em uma constante alteração humana, obnubila a realidade através do “encobrimento”, do impedimento do “ensimesmar-se”. Em um sistema como este, o ensimesmamento deve ser evitado a todo custo pois proporcionaria o desvelamento deste ciclo, demonstrando sua face obscura, tirando o véu que encobre a situação de constante naufrágio na qual o ser humano contemporâneo se encontra.
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Este mesmo marketing faz com que desenvolvamos um tipo de vida peculiar, regido pelas atualizações constantes de artefatos tecnológicos. Nas palavras de Baudrillard (1995, p. 15) "vivemos o tempo dos objetos", ou seja, "existimos segundo o seu ritmo e em conformidade com sua sucessão permanente", assim, “os vemos nascer, produzir-se e morrer". Quando uma máquina atual aparece e é divulgada, reagimos ao estímulos proporcionados pela manipulação do marketing e das possibilidades de dominação das circunstâncias que a máquina nos proporciona. Em consequência disso, elabora-se em nós a necessidade de a consumir. Do outro lado, a versão antiga, desatualizada, entra em decadência, tona-se "senil". Vivemos no tempo de ambas, “segundo seu ritmo”, em uma frenética alteração.
Para continuarmos alterados, necessitamos ser explorados. A exploração não é externa, mas sim interna como bem nos mostra Byung-Chul Han. O indivíduo "explora a si mesmo e, quiçá, deliberadamente, sem qualquer coação estranha. É agressor e vítima ao mesmo tempo" (HAN, 2017, p. 28). Auto explora-se para adquirir a última atualização, mesmo que sua atitude implique no aquecimento do globo terrestre ou no desmatamento de alguma área de preservação. O marketing é a “reforma da natureza” humana pois o humano não é consumista naturalmente mas sim induzido a isso. A existência do humano moderno tende à pura alteração.
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REFERÊNCIAS
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BOUDRILLAR, J. Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.
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HAN, B-C. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
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MAIA, V. R. M. Sobre a “alteração” Humana. Revista Ariel, Montevidéu, 25, pp. 54-61,
Junho, 2020.
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ORTEGA Y GASSET, J. Meditação da Técnica. Madrid: Santillana, 1997.
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ORTEGA Y GASSET, J. O Homem e a Gente. Rio de Janeiro: Ibero-Americana, 1973.
SOBRE O AUTOR
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Bacharel em Engenharia Agronômica pela UNICASTELO (2006); Licenciado em Filosofia pela UFSC (2017); Mestre em Investigação em Humanidade, Cultura e Sociedade pela UCLM (Albacete, Espanha 2020) e Doutorando no programa de Doutorado em Filosofia pela UCLM (Toledo, Espanha). Atualmente professor de Filosofia e Sociologia em Ensino Médio da UNOESC/Superativo (Joaçaba/SC) e professor de Filosofia na EEB Padre Nóbrega (Luzerna/SC). Contato: victorrenato.morais@alu.uclm.es
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COMO CITAR
ABNT: MAIA, Victor Renato de Morais. Alteração e Atualização. Uma perspectiva orteguiana sobre a atualização de artefatos tecnológicos. In. Filosofia no Cerrado. Portal Eletrônico de Publicações. jan. 2021 ISSN 2448-3397.
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