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“Uma vez declarado louco, tudo que disser será considerado parte da loucura”: disciplina, controle e gestão

Por Bruno G. Borges 

Assisti pela terceira vez, esta semana, ao filme Ilha do Medo (Shutter island, 2010, de Martin Scorsese). E, foi dele que extrai o título deste texto. Num delírio de Andrew (ou Teddy), interpretado por Leonardo DiCaprio, uma médica revela a ele que ninguém sai da ilha onde está, pois, “uma vez declarado louco, tudo que disser será considerado parte da loucura”. Mas, assim como não há saída do manicômio, também não há espaço para seus pensamentos desviantes. O shutter fará seu trabalho...

Depois de assistir ao filme e perceber nele elementos que só puderam ser captados na intersecção daquele momento com o que estava sentido até ali, lembrei-me de Foucault e de Deleuze e seus empreendimentos acerca da loucura.

É bastante conhecido o hercúleo trabalho que levou Foucault a determinar que, sim, vivemos em uma sociedade disciplinar, sobretudo, aquela que desenhada entre o final do século XVIII e se coroou na primeira metade do século XX.

 

As ideias que delinearam essa experiência, segundo ele, eram as de confinamento, vigilância, concentração e denúncia.

Mais tarde, Deleuze reconhecendo o belo trabalho de seu contemporâneo, instigou o leitor de que Foucault sabia da brevidade desse cenário. Como disse Deleuze, assim como a sociedade disciplinar sucedia a sociedade de soberania, aquela que se impunha com tanta violência, a disciplinar, também tinha um prazo a ser cumprido. A Segunda Guerra, diz o filósofo francês, exprime essa condição de disciplinados que não somos mais.

 

Diante o esgotamento dos meios de confinamento, ele destaca que houve um movimento reformista que desenhou uma nova condição, que William Burroughs chamou de mostro do controle.

 

Deleuze afirma que “Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação”. E ainda, enquanto na sociedade disciplinar o importante é a assinatura e a matrícula, a sociedade de controle se fideliza à cifra.

 

As máquinas, vai dizer Deleuze exprimem essa condição a qual não apenas somos contabilizados, mas também significados pelas produções de cada sociedade:

“As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus.”

 

Mas, do mesmo modo que Deleuze declarou a sucessão da sociedade disciplinar pela de controle, parece ser agora a passagem da sociedade de controle para outra, que talvez estejamos experimentando desde meados dos anos 2000. Assim, em breve, a sociedade de controle caminhará para compor as sociedades históricas.

 

Que nova sociedade é esta e que máquinas podemos dizer que as exprime?

 

Desde os anos 1950, o termo gestão vem circulando nos campos da administração científica e depois da economia, mas é a partir de sua inserção no campo da política, que esse conceito passa a ser apresentado como paradigma.

A gestão na política substitui o público pela técnica. A palavra pelo número. A vontade do povo pelo súdito do mercado.

A questão é que quando ocupa o lugar da política, a gestão não age apenas sobre as coisas do governo. Fala-se em gestão da economia, das empresas, da carreira, da educação e, por que não das subjetividades.

 

E este é o ponto que mais me interessa. Será que não estamos justamente em uma sociedade da gestão das multiplicidades?

 

Chamo de sociedade da gestão, o plano no qual é possível a existência da singularidade, vez ou outra capturada e dela feita dinheiro, das massas que se conectam supostamente livres, de uma permanente sensação do ilimitado ao mesmo tempo em que o limite se apresente na forma de segurança.

 

Se na sociedade soberana, a vontade estava centrada no soberano, na sociedade disciplinar no Estado, na sociedade de controle, no mercado, na sociedade de gestão todas as expressões anteriores parecem ser possíveis graças à centralidade na informação.

Por isso, as máquinas da sociedade de gestão, como intensificação daquelas próprias da sociedade de controle, são as telas, os chips, o espectro. Micromáquinas.    

Se na sociedade disciplinar a loucura é enquadrada nos hospícios encastelados e, nas sociedades de controle ela é tratada nos domicílios, em instituições de meio período, por exemplo, nas sociedades de gestão os hospícios são open-door, como intitularam Deleuze e Guattari em Mil Platôs, mas aqui ampliados, no movimento que fez, por exemplo, Machado de Assis em O Alienista. Não há porque definir mais um espaço para a loucura. No entanto, o fato de ela estar distribuída pelo socius não a torna aceitável, pelo menos não a loucura processual, essa sim, sempre marginal.

Voltando ao filme, a cena final deixa a sensação de que Andrews, que vive predominantemente sua personalidade de Teddy Daniels, não está curado e que não terá opção que não a lobotomia. Mas, o que fica mesmo como resíduo de toda a trama é que Andrews simplesmente não aceita a condição de louco que lhe é imposta. As fugas não me parecem ser da realidade, mas da verdade assim, como disse Foucault acerca de Édipo, quando este perfura os próprios olhos. É o peso da verdade e não da realidade que o leva a tal atitude.

As citações diretas de G. Deleuze neste texto correspondem ao apêndice Post Scriptum sobre as sociedades de controle, que foi encorporado em Conversações (1992), São Paulo: Editora 34 [Pouparlers, Les Éditions de Minuit, 1990].   

Outras referências que influenciaram este texto:

DELEUZE, G; GUATTARI, F. (2012) Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. v. 3 trad. Aurélio Guerra Neto; Ana Lúcia de Oliveira; Lúcia Cláudia Leão; Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, Coleção Trans.

DELEUZE, G; GUATTARI, F. (2011) O Anti-Édipo. São Paulo: Editora 34.

FOUCAULT, M. (2008) Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.

FOUCAULT, M (2008). Segurança, território, população. Curso dado no Collège de France Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes.

Para consultar as edições em língua original das referências

BORGES, B. G. (2018) Adeus, formação. O anti-Emílio anunciador do programa de vida. Universidade Federal de Uberlândia, Tese de doutorado, 328 f.

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